Jerónimo Sampaio, evocado por J. D.

"O Sampaio ainda é vivo e forte!", caricatura de 1945, do talentoso Mário  Monteiro Dias de Castro, então estudante do Liceu de Guimarães. 

Entre os muitos textos de evocação de memórias nicolinas que tenho recolhido, há um, que o autor dedica ao seu “Velho Mestre na Arte de Representar”, que me intriga. Foi publicado em 1956, no Notícias de Guimarães e foi escrito por alguém que se assina, simplesmente, com as iniciais J. D., que não consigo identificar, mesmo depois de consultar os meus amigos com memórias de elefante. Participou na “boémia académica vimaranense” entre 1923 e 1928 (altura em que deve ter frequentado o Liceu Martins Sarmento). Um tempo em que, nas suas palavras, a academia vimaranense viveu “um dos seus períodos de maior brilho, de maior esplendor, sob a égide de Jerónimo Sampaio, coadjuvado pelo Grande e Querido Mestre José Luís de Pina, como encenador e caracterizador”.
Este J. D. teria sido um actor de bons recurso, a ponto de Jerónimo Sampaio ter pretendido levá-lo “às honras do Teatro Nacional”. Terá mesmo estado “em estudo” a sua ida para Milão, mas negou-se a assinar o contrato que lhe foi proposto, “por modéstia, inconstância e respeito a um desejo maternal”, o que lhe valeu um puxão de orelhas do seu velho mestre.
No velho Teatro D. Afonso Henriques, contracenou com Custódia Costa, Arnaldina Guimarães, Francisco Aldão, Miguel Aldão, e muitos outros, entre os quais destaca José Teixeira de Barros, na comédia D. Beltrão de Figueiroa, de Júlio Dantas que deu corpo e voz a uma menina Celimena, “que gerou apaixonados no meio vimaranense tão perfeita foi a dicção e a caracterização desse rapaz que, sendo muito simpático, a natureza dotou com um coração de oiro…”
Aqui fica a Ronda da Saudade, dedicada à memória de Jerómino Sampaio, com a esperança de que alguém de entre os que lerem nos dê pistas que possam iluminar a identidade do J. D. que o escreve.

Ronda da Saudade
À memória de Jerónimo Sampaio.
Pretendem os gentis estudantes do Liceu de Guimarães solenizar condignamente este ano as tradicionais Festas Nicolinas.
Desta forma não morre uma tradição velha da Nobre e Vetusta Cidade, Mãe da Comunidade Portuguesa, que ombreou por vezes com as festas coimbrãs.
E ombreou em brilho o folgazia académica, menosprezando-se, por vezes, o seu alcance intelectual não deixando gozar a vida, sempre dúbia, incerta e amarga, a essa Mocidade ansiosa do Belo e Alegria, como tantos e tantos que passaram já em tempos idos o eclipse da juventude no velho cenóbio das clarissas vimaranenses o melhor da sua vida de ilusões, de mocidade boémia, do bem viver académico despretensioso, alegre, divertido, onde não reza a maldade, e a teia da vida só tem fios de alegria no doidejar de corações em botão. Pena é que poucos a ajudem e as burocracias e métodos pedagógicos modernos — por vezes rigorosos — empanem estas manifestações da Primavera da Vida Académica e até queiram transformar numa tarde outonal, merencória e fria.
A copiar e a brincar também se aprende...
— Ó Velhos rabugentos que já esquecestes a Mocidade: — Vá, ajudai a brincar os novos. Agora é o tempo deles. Vós só tendes uma Noite: A Noite da Saudade, Nessa Noite tornai-vos Novos por momentos, nessa noite fria e sem estrelas tecei a teia da Dor e da Saudade. Estamos no Ocaso do Vida...
“...e como é triste
ver pregar as tábuas dum caixão!...”
Não será pedagógica a alegria esfusiante dessa Mocidade radiosa, sem a proibirem? Se a libertarem de peias rígidas que contrariam e geram a revolta, ela será salutar ao corpo e ao espírito nos conturbados tempos de injustiça e mentira que, infelizmente, atravessamos.
Prendam numa gaiola de oiro e pedrarias finas uma avezita implume. A melancolia e o depauperamento matá-la-á dentro em pouco.
Voai, rapazes, voai até à incomensurabilidade do azul da Alegria.
Nós, os Velhos, já não podemos voar,
O Abutre do Tempo feriu-nos com a sua garra adunca!
Exânime e a tremer, esta juventude quinquagenária já, com cabelos nevados de tantos Invernos, não pode voar.
Nunca mais.
………………………………………
Passaram dois anos.
Contou no Tempo, jamais na Saudade.
Num pardacento e frio dia de Novembro findou Jerónimo Sampaio.
Dele, do meu Velho Mestre na Arte de Representar, ficaram-me gratas recordações e a certeza de que fui o seu discípulo querido.
Não importa a sua biografia, pois que todos a conhecem.
O que importa é s saudade que tenho do Grande Nicolino, do Homem que soube criar um escol de amadores com o seu génio de bon diseur, de bom Artista, de bom Mestre, de bom Amigo.
Durante seis anos recebi as suas lições. Se o aluno tinha confiança absoluta e respeitosa no Mestre, o Mestre tinha confiança absoluta nos alunos. E uma e outra nunca foram desmentidas.
O grande Mestre, entre outras — e era exigente na escolha de obras teatrais — ensaiou “A Ceia dos Cardeais”, “D. Beltrão de Figueiroa”, “Cavalgada nas Nuvens”, “O Sonho do Condestável”, “Uma Anedota”, “Por Amor de Colombina”, e tantas Danças de vários autores, como sejam do Tenente Heitor de Almeida e do saudoso P.e Gaspar Roriz, de quem tive a honra de ser um dos seus amigos.
Eram almas de eleição, edições raras nos calamitosos tempos que se atravessam.
No princípio deste ano, no Porto, visitando o Velho costumier Valverde, ali me falaram com saudade de Jerónimo Sampaio.
O seu agradável convívio, a sua comunicante alegria, o seu savoir vivre, têmpera de artista consumado, os seus conhecimentos e grandeza de alma fizeram dos seus discípulos um grupo de amigos, um escol de amadores distintos. Recordo-o com indeléveis saudades.
Jerónimo Sampaio quis levar-me até às honras do Teatro Nacional. Para tal fez várias démarches junto das principais figuras Nacionais de Teatro.
Quando esteve em estudo a minha partida para Milão, o Velho Mestre Amigo exultou de alegria. Por modéstia, inconstância e respeito a um desejo maternal, não o aceitei. E quando o Bom Mestre soube que me tinha negado peremptoriamente a assinar o contrato, procurou-me rapidamente e acerbamente verberou a minha atitude.
Mas, tudo estava terminado...
Nova vida, novos rumos, nova trajectória na órbita da Vida, desta vida “tecida como o linho, um fio de dor, um fio de saudade”, num tear de injustiças, de incompreensões, de mentiras, de infâmias, que o tempo não apaga e a alma não esquece.
“De entre vós o que estiver isento de culpa que me atire a primeira pedra...” — disse aos homens de pouca fé e muita miséria moral o Mártir do Calvário.
De 1923 a 1928 a Boémia Académica Vimaranense teve um dos seus períodos de maior brilho, de maior esplendor, sob a égide de Jerónimo Sampaio, coadjuvado pelo Grande e Querido Mestre José Luís de Pina, como encenador e caracterizador.
Comigo contracenaram a admirável Artista amadora D. Custódia Costa, senhora respeitabilíssima, de saudosa memória, de rara habilidade cénica e à memória da qual me curvo respeitoso; a D. Arnaldina Guimarães, que dizia muito bem e cujos créditos teatrais ficaram firmados no “Por Amor de Colombina”, da autoria do condiscípulo Horácio de Castro Guimarães; o Chico Aldão, o querido e saudoso condiscípulo que a Morte tão cedo levou e que em teatro tinha um porte tão fidalgo; do Miguel Aldão, de apurada vivacidade; o Gomes, de magnífica intuição; dos mortos que eram o impagável Carrilho, o Olegário, o Laurindo, o Barreto e o Dantas como pontos; o Jaime Planché, os Barros de Fafe, o Avelino Jorge e o Zé Moré, guitarristas saudosos, o José Eugénio e o Maximino, guitarristas exímios, o cómico Arnaldo Pereira Leite, o Júlio, o Passos, o Gomes Alves, o Humberto, sei lá, tantos, tantos outros que a memória atraiçoa e que constituíam o magnífico agrupamento de então. E, de entre os Mortos, destaco o Zé Teixeira de Barros, de querida memória, a menina Celimena do “D. Beltrão de Figueiroa”, que gerou apaixonados no meio vimaranense tão perfeita foi a dicção e a caracterização desse rapaz que, sendo muito simpático, a natureza dotou com um coração de oiro...
Aos Mortos a minha indelével saudade, aos Vivos um grande abraço.
E tudo isto era obra de Jerónimo Sampaio.
Guimarães, hoje, tem uma magnífica casa de espectáculos que é obra dos Jordões e que muito admiro.
Passo por ela com admiração pela grandeza que ostenta, mas com a indiferença, a frieza de nada que a ela me prenda.
Para mim resta-me a saudade do velho Afonso Henriques, onde tantas noites de beleza artística e de apoteose ao meu homenageado de hoje vivi.
O teatro ali findou. Fica o local, como um espectro, a lembrar-me glórias da Mocidade.
De seguida vinham as Maçãs, o Pregão de costume declamado pelo Jaime Sampaio, a organização do Pinheiro, tudo sob as indicações do Grande Nicolino. E dessas noites de glória académica, de boa Arte, com a presença fidalga das principais famílias de Guimarães, que sempre redundavam numa apoteose para o Velho Mestre, também tínhamos a honra da presença dos nossos Professores de então que, da sua frisa, um pouco à sorrelfa, batiam as palmas enlevados nos Jovens actores que... claro... acima de tudo a disciplina... mas que sobretudo eram seus alunos.
E. entre eles, era costume ver-se os saudosos Cónego Vasconcelos, Dr. David de Oliveira, Dr. Dias Pinheiro, de saudosas memórias, e ainda os vivos Mestre José de Pina, Dr. Joaquim Torres, Dr. Aventino Lopes de Faria, Dr. Jesus Gonçalves e outros para quem vão os meus sinceros respeitos.
Bons Mestres. Bons Tempos.
Li no Nicolino “Notícias de Guimarães”, do nosso lídimo Nicolino Antonino, um apelo aos velhos para uma reunião de confraternização dos Velhos.
Nada mais justo e mais acalentador, nesta velhice rabugenta e caturra, para matar saudades.
Nesse pequeno programa lembrar-se-iam os Mortos e abraçar-se-iam os Vivos.
Mas um dos pontos que tocou a minha sensibilidade foi a homenagem à Mãe Aninhas e ao Jerónimo Sampaio, à memória dos quais, reverente, desfolho as minhas sempre vivas saudades.
………………………………………
E, meus caros velhotes, vamos lá a isso: às papas e aos rojões, a rebentar algumas peles de bombos, a abraços e a matar saudades que nunca morrem, as marotas.
J. D.
Notícias de Guimarães, 25 de Novembro de 1956

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