O Minho, por Alfredo Guimarães



Alfredo Guimarães, que nasceu em Guimarães a 7 de Setembro de 1882 e ficou conhecido por ter sido o instalador e o primeiro director do Museu de Alberto Sampaio, é um jornalista, escritor crítico de arte com basta obra publicada, nomeadamente dispersa por diversas publicações periódicas, nomeadamente na Ilustração Portuguesa, em cujas páginas marcou presença assídua entre 1909 e 1921. O primeiro texto que Alfredo Guimarães escreveu para a Ilustração Portuguesa versava sobre o mesmo tema do Conde de Arnoso, que aqui publicámos antes, O Minho. No entanto, o olhar de Alfredo Guimarães sobre a região que o viu nascer é diferente do do seu conterrâneo, um tanto mais político e muito mais crítico. Estávamos em 1909, e a República já se anunciava. Alfredo Guimarães era republicano.
 
ASPECTOS DO MINHO
Na viagem para o Minho, próximo do local onde o Vizela e o Ave se reúnem para correrem juntos até às areias de Vila do Conde, há uma pequena estação de aldeia a que chamam a Trofa, onde o “leitor solícito” poderá iniciar o roteiro desta excursão de mero carácter literário.
Ao domingo, se tivermos partido do Porto no primeiro comboio da manhã, teremos o divertimento sobremaneira curioso da missa do dia e feira de tamancos, chapéus bragueses, varapaus ferrados, em frente da estação aldeã e no adro da igreja de S. Martinho. Se for no Verão, há a festada da praxe. E acomodados no primeiro trem da via-férrea da companhia de Guimarães, seremos de novo no caminho do desportivo interesse que nos preocupa.
Abro-lhe as portas, leitor amigo: é este o Baixo Minho dos romances bucólicos que por aí se lêem. Sigamos o nosso rumo; e não estranhe que eu próprio, filho da terra, encontre muita novidade e muito prazer por estes sítios tanto do meu conhecimento.
Não se poderá afirmar rapidamente, qual, de entre o povo e a terra completou o seu semelhante: se as canções, o vestuário e os costumes morais deram expressão à paisagem, moldando-a num singular efeito cenográfico; se a paisagem, do seu espírito diverso, cenograficamente inquieto, atingindo linhas e posições semelhantes do movimento humano, pôde insinuar na alma do povo a sua imprevista, espontânea e vegetal maneira de ser.
Integram-se continuamente.
E como a terra é semelhante das suas populações, assim a terra e as suas tribos campónias se isolam em curiosas particularidades pelo espaço relativo duma dúzia de léguas. Esses outros lavradores de Viana do Castelo são mais, muito mais expansivos que o lavrador dos arredores de Guimarães. Segue a ordem, nesta diferenciação regional, a paisagem, que no alto do corpo provincial é clara, dum verde suave e arejado, e logo se assombreia, como numa descida de encosta, aparecendo escura e um tanto pesada nos arredores melancólicos e húmidos da velha e triste cidade do rei primeiro.
Internados uma vez no campo, não é à família minhota (de ordinário mesquinha e rude de costumes) que mais interessantemente procuramos observar. São os grandes soutos de carvalhos, tostados da soalheira, inúmeros, baixos e pesados como uma grande reunião de burgueses; são as longas planícies da beira-rio, pinceladas dum verde lustroso e virgem são os altos exércitos de bravio, perfilados no serro dos montes sinuosos e como vigiando a gestação ingénua das semente: dos quinteiros e da seara e são, ainda, desposando a vigorosidade moça da terra, os ramos claros das laranjeiras, a flor simbólica de todos os romances de amor, cujo perfume embriagante é irmão dessa doce ilusão que, à guisa de prólogo, antecipa o melodrama áspero do matrimónio.
Independente dos cultivos livres e mais árduos do campo, o cuidado pelos mimos pequeninos do quintal. O serpão-limão que perfuma de gosto e natureza todas as substanciais sopas de clérigo; a alfádega verde, que sobe em grandes cestos de verga até ao escadório dos santuários, um dia de caramol ou romaria soalhenta; os cachos tristes dos lilases, caindo dos muros das casas senhoriais; as pontas cheirosas da hortelã; as maias amareladas, as japoneiras, as macieiras claras de Março; e então, assentes nos cachorros de pedra da casa rústica, os cravos do S. João — alguns violentos de cor, na sua perfumada e estuante folhagem sanguínea; outros delicados e frescos, quase flores de sangue azul na seda macia das suas folhas claras.
E deste modo se compreende com que suave e perfeito gosto a natureza discorre e trabalha no adorno de si mesma.
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Depois, tudo é criado ao jeito e à razão da terra. A tua geração inconsciente e casual, “leitor solicito”, é homogénea dessa outra existência, toda vegetal e espontaneamente impenetrável, em prólogo ou epitáfio definidos, que não sabemos com que razão desabrocha, vive e silenciosamente passa. A natureza, a natureza!... E em tudo tão imprevista e enigmática que eu não hesito em afirmar que, como da tua alma, a maior vantagem da beleza campestre advém, ingenitamente, da sugestão do seu mistério.~
Em dias de descanso, mais do que nas grandes fainas do trabalho agrícola, temos o elemento coreográfico da população minhota, movimentando-se alegremente desde o ser dia até que o sino da paróquia badala às Almas nas nove horas do Verão. Mas a mulher do Baixo Minho não possui metade dos encantos da aldeã rosada de Caminha ou dos castrejos dos Arcos do Valdevez. Outro tanto posso dizer do que veste e do que combina em arranjo caseiro. Moralmente é inútil, ou pelo menos vulgar. E no vestuário acresce-lhe o costume antiestético dos claros sobre claros, em grandes gamas brancas, com nenhuma transição psíquica no que origina os contrastes externos dum carácter, a combinação pictural, a corografia comum das regiões.
Por isso é que o campo do sul do Minho é único em manifestações pitorescas, e mais encantadoras quanto mais isolado o vejo.
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Hoje, por onde a vinha minhota cresce, semelhante a uma aralha enorme subindo os troncos aromáticos das cerejeiras; e onde o cultivo diverso se ramifica em grandes leiras e hortas de qualidade — ninguém reconhecerá a terra (tão igual e rasa é a decoração do quadro campesino) onde, numa época mais lógica e mais harmónica, inúmeros conventos de inúmeras seitas congreganistas levantaram os muros fortes da casa do seu ofício religioso e operário, aparentemente eternos para muitas das gerações que nos precederam. Onde os princípios da religião e da humanidade grande vida lograram, numa outra e mais perfeita ordem moral, sobem agora as heras rudes e carnosas que tudo sistematizam de agonia e ruina, impiedosas como o critério social dos homens, e tão indiferentes no seu viver que mal pensam em que preciosos e pitorescos muros lavraram a sua teia verde e destruidora.
Foi, sem dúvida, pela quinta decorada dos conventos, que outrora se decorou a propriedade cuidada e interessante da velha fidalguia portuguesa. Empregavam-se, numa indubitável comunidade de costumes e gostos, os mesmos motivos de adorno, a mesma topografia agrícola. E a quinta não era, como nos nossos dias, simplesmente um processo de afazer industrial, um meio de viver.
Assim tu te renovasses, mais estimada e mais compreendida, natureza suave e excepcional do meu lugar.
ALFREDO GUIMARÃES.

Ilustração Portuguesa, n.º 156, Lisboa, 11 de Janeiro de 1909

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