Da modernidade da obra de Raul Brandão

Raul Brandão

Muito se tem falado em Guimarães de Raul Brandão ao longo deste último ano e, espero-o, muito se continuará a falar de Raul Brandão ao longo dos anos que hão-de vir. Brandão é uma das figuras maiores da literatura contemporânea em língua portuguesa e o seu nome e a sua obra são indissociáveis da terra que, por escolha própria, é sua. Merece todas as homenagens públicas que assinalem o seu nome, mas a maior das celebrações que lhe pode ser feita é a que tenha como programa o encontro silencioso e íntimo do leitor com a sua obra. Porque não há maior homenagem a um escritor do que a leitura e a busca de compreensão da sua obra.
No entanto, carrego na nota do cepticismo quanto aos efeitos da celebração na conquista de novos leitores para a obra de um escritor com a densidade de Raul Brandão, quando leio nacos de prosa como o que se segue, que encontrei no “editorial” da Agenda Cultural de Guimarães para este mês de Março:
“Pretende-se abrir o livro e a obra de Raul Brandão à população, potenciando o apetite pela literatura e lançando sementes para este século XXI, a partir de um autor determinante do século XIX.”
Suspeito que quem tal escreve nunca abriu o livro nem a obra de Raul Brandão ou, se abriu, não percebeu nada do que leu, nem do seu enquadramento na história da literatura portuguesa. Se Raul Brandão apenas tivesse produzido a escassa obra que publicou no século XIX, não seria comemorado no século XXI, apenas seria mais uma das pobres almas que jazem esquecidas na vala comum dos escritores menores do nosso Oitocentos.
Sendo certo que viveu metade da sua vida no século XIX, não é menos certo que foi na outra metade que Raul Brandão se afirmou pela singularidade e pela modernidade da sua escrita, assumindo, aí sim, a condição de autor determinante do século XX, influenciando sucessivas gerações de escritores, como Herberto Helder, Vergílio Ferreira, Almeida Faria ou Agustina Bessa-Luís. Ou José Gomes Ferreira, que, além de poeta maior, foi, como Brandão, um notável escritor de memórias. O poeta militante não poupa nas palavras de que se socorre para expressar a sua admiração pela escrita de Raul Brandão, que idolatrava como a um Deus e de quem era um admirador cego. Revisitemos a sua obra A Memória das Palavras — I (ou o gosto de falar de mim), onde revela a influência determinante de Brandão na formação da geração literária a que pertenceu:

De facto, os nossos guias em 1921 não eram, nem poderiam ser, Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro.
Como Mestre elegEramos Raul Brandão, o genial poeta de A Farsa, de Os Pobres e do Húmus em que os componentes do grupo encontravam não só o Espanto, a Caricatura, o Absurdo, o Desumano e o Desvario do planeta circundante, mas também a Fraternidade e a Revolução Inverosímil imanente. Ao lado de Brandão colocávamos o Fialho dos contos rústicos, a realidade camponesa do incomparável Aquilino das Terras do Demo, Camilo, Dostoievski, Tolstoi, Gorki, Strindberg...

Não é por acaso que José Gomes Ferreira abre o seu Relatório das Sombras (A Memória das Palavras — II) com um texto que dedicou ao seu “mestre secreto”, do presente, do passado  e do futuro. Aqui fica, que vale a pena ler.


DESCOBRI ENFIM O MEU MESTRE
DO PRESENTE, DO PASSADO
E DO FUTURO:
RAUL BRANDÃO


Breve apresentação
da sombra do meu mestre secreto
(e tão público!)
Raul Brandão:


Quando, aí por 1920, a geração a que pertenci ousou deitar a cabecinha de fora, deparou-se-me um dos espectáculos mais parvamente grotescos da história literária portuguesa — interregno por felicidade bastante curto, mas suficiente para que os patetas à rédea solta dissessem e escrevessem todas as imbecilidades previstas para mil anos.
A paisagem era severa de escombros e cinzas — armistício, guerra civil, começo verdadeiro do século xx — e no rescaldo chamejavam apenas alguns raros lumaréus de fogo vivo. Um deles, aliás então o mais recente, chamava-se Aquilino Ribeiro que ainda hoje arde e arderá pelos tempos fora, alheio a chuvas e impropérios, com o mesmo ímpeto poderoso e solitário da primeira acha: O Jardim das Tormentas (1913). Mas a mancha geral era a da asneira pairante, enlace de várias caricaturas pífias, disfarçadas de revolução nas artes e nas letras, que grupelhos de cambiantes diversos impunham com denodo, alheios a inibições de crítica nessa conjuntura inexistente ou, pelo menos, incapaz de deter aquela corrente ilúcida que inundava os livros, as revistas, as montras e os jornais da época.
O grupo maior, reforçado com as bordadeiras de sonetos, cultivava uma espécie de degeneração infantil do Saudosismo (ah! pobre e espectral Teixeira de Pascoaes insultado!) que encontrava o seu deleite extremo em espremer, nas quadrinhas à moda do Minho, conceitos de coisa nenhuma, num cenário de almofadas de chita, caravelas de doces de ovos e cruzes de Cristo nos vidrados da Fábrica da Viúva Lamego. Seguiam-se os epígonos de Eugénio de Castro que todos os dias, ao pequeno almoço, serviam, numa bandeja, a cabeça de S. João Baptista a Salomé — e a vida só lhes sabia a vida quando a enfeitavam de infantas de olhos cor de figos doirados ou de princesas moribundas a afagarem pavões de caudas mosqueadas de prata fosca.
Por fim, surgia a falange “revolucionária” que se entretinha a pregar uma paródia docemente jornalística do Futurismo — enquanto a autêntica Revolução literária iniciada pela revista Orpheu continuava a propagar-se por baixo das ruínas do século...
A tal minha geração de mocinhos líteras (a “nova vaga” como a denominaríamos anos depois) parou a olhar estupefacta para aquele panorama tolo, em que até os ambientes predilectos do autor de Ao Ouvido de Madame X, Júlio Dantas, tão duramente alvejado pelos Futuristas Verdadeiros, apareciam agora disseminados e generalizados em caricaturas de vingança total.
Na verdade, a acreditar na visão que os literatos desse período incrível nos forneciam, o mundo, depois do drama da Grande Guerra de 1914, tornara-se numa fina parada de elegâncias berrantes, onde tudo — miséria, amor, ódio, honra, desgraça — se exprimia em termos aparatosos de frivolidade turística, de casaca, no meio de um banzé infernal de Jazz-Band. O sangue dos combates solidificara-se, para pintar de rouge as bocas das mulheres. Beber chá adquirira, de súbito, um valor litúrgico de rito excepcional, principalmente quando sorvido, de dedinho no ar, nos templos do Chiado — na Marques, na Benard, na Garrett... A hierarquia dos problemas também se modificara, por lógica inerente ao ritmo do conjunto, e, em vez da morte e do amor, os heróis dos contos e das crónicas discutiam a altura psicológica das saias e o “luar de seda” das roupas brancas que adoçavam a pele através de subtis diálogos de alcova recheados de trocadilhos a fingirem de paradoxos.
A própria Natureza tomava o jeito maricas do momento. As nuvens já havia quem as confundisse com borlas de pó-de-arroz. O mar chiava como um enorme bule de chá verde. O azul do céu apetecia talhar nele pijamas de cetim. A lua cortara o luar à garçonne. As estrelas pareciam estilhaços miúdos dum espelho quebrado por um gato-infinito. (Estilo da época).
E todos à uma, salvo raras e ferozes excepções, se compraziam neste jogo fútil de “arte para esquecer” ...
... enquanto o Planeta rolava no espaço como uma cabeça decorativa e oca.

Poucos poderão imaginar o que essa meia dúzia de aprendizes líricos sofreu diante de realidade tão inconsentânea com os seus sonhos de adolescentes.
Sozinhos, desamparados de guias e de esteios, debatíamo-nos, quase histéricos, na impossibilidade de habituar os pulmões ao ar irrespirável e, ao mesmo tempo, incapazes de purificá-lo.
Não nos considerámos logo vencidos, é certo. Reagimos, brutalmente até, com panfletos deselegantes e pateadas rudes nos teatros — verdadeiros “angry young men” de 1920.
Mas faltava-nos o incentor catalítico, a voz convincente que afirmasse bem o contorno e a certeza das nossas verdades, no fundo ainda balbuciadas e inítidas.
Encontrámo-la, felizmente. Pois foi por essa ocasião que um de nós — talvez eu por intermédio do meu mestre de jacobinismo metafísico, Leonardo Coimbra — fez uma descoberta extraordinária. Nada menos, nada mais do que esse escritor português tão veementemente ansiado — e que escritor! —, do tamanho de todos os problemas lancinantes da vida e da morte, estranho, misterioso, profundo, desconhecido, terrível...
— Chama-se Raul Brandão ...
— Raul Brandão?... Pode lá ser! Nunca li esse nome nos jornais.
— Pois não. Mas existe. Tomem!
E atirei com o Húmus, Os Pobres e A Farsa para a mesa sonâmbula do Leão de Ouro, o nosso centro definitivo de discussões agrestes, entre a fumarada de cigarros e ilusões de regenerar as letras.
E então, com espasmo de êxtase, devorámos o Húmus, Os Pobres e A Farsa (“Ai que ma levam! Ai que ma levam!”) e saímos meios zaranzas, aos tombos, do café. Mas estávamos salvos. Ao Dostoievski, ao Tolstoi, ao Gorki, ao Strindberg juntávamos agora um deus novo que o facto de escrever em português tornava mais estrangeiro ainda, não sei por que milagre de alçapões.
Desde essa noite o genial escritor que, com mãos potentes, sujas de barro e de tinta caricatural, amalgamava as coisas e os homens num caos misturado de gritos, paixões, manias, sonhos, fantasmas, desejos e piedade e mais piedade — o Gabiru, o Gebo, a Mouca, a Luísa, o Pita, a Candidinha, a Joana ... —, passou a ser a obsessão central do nosso treino de escritores inexperientes, mas fartos até à medula de lenços de ramagens e de búzios com rumores de naufrágio oculto. Encontráramos, finalmente, o molde fácil, simples e aliciante, capaz de reconciliar as duas tendências (uma exterior e outra interna) que se chocavam no nosso desencontro de artistas com o Tempo: o Destrambelho e a Seriedade.
A forma alucinante, faulhenta, por vezes até desconexa de Raul Brandão “desculpava” certas transigências de desconchavo impostas pelo ambiente. (Ah! agora podíamos dizer, sem remorsos de trair, que “a ternura era líquida”!) Mas, por outro lado, tínhamos a certeza de que existia alguma coisa de profundo no espanto de viver, para além das palermices dos musiquins que insistiam em ver nos homens meros pretextos para vozes chilreadas por ventríloquos de opereta.
Durante meia dúzia de anos, Raul Brandão foi, sem o saber, o mestre secreto da primeira fornada que, após a Revolução Formal do Futurismo, e embora concordante com todas as novidades do Orpheu e revistas subsequentes, se apôs por instinto ao seu conteúdo aristocrático, em busca aflita de outro Sinal.
(Não nos esqueçamos também que a maior parte da obra de Fernando Pessoa era então desconhecida.)
Com os olhos húmidos de Os Pobres começámos todos a imitá-lo no silêncio ingénuo dos nossos quartos de balbucia- dores inexperientes. Montes e montes de linguados sarrabiscados até às tantas da manhã que, por fortuna nossa, nenhum editor se afoitou a publicar.
Depois, pronto. A juventude começou a desfazer-se no ganhar a vida de cada um e a maioria, este agora, aquele amanhã, foi pouco a pouco desistindo de salvar as artes e o mundo.
Do grupinho (havia outros paralelos) fiquei apenas eu, suponho. Eu, nesta teima de esperar pela água límpida de algum dia, onde as minhas guelras líricas respirassem à vontade.
E não esperei em vão. Porque, aí por volta de 1940, surgiu enfim a admirável geração do Novo Cancioneiro a que logo me associei, sem necessidade de novas verdades senão as que, vinte anos antes, extraíra do meu mestre secreto Raul Brandão e me permito resumir nesta frase-lema: “só a fraternidade quente entre os homens dá sentido ao abismo absurdo em que apodrecemos”.
José Gomes Ferreira, Relatório de Sombras ou A Memória das Palavras II, Moraes Editores, Lisboa, 1980, pp 11-17

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