Efeméride do dia: Francisco Martins Sarmento (III)

Jazigo de Francisco Martins Sarmento no cemitério de S. Salvador de Briteiros.
A suástica da porta nada tem a ver com a ideologia que, décadas mais tarde,
a adoptará nas suas bandeiras. Trata-se de um símbolo recorrente nos achados
arqueológicos de Francisco Martins Sarmento.

10 de Julho de 1904

Domingo.-  Às 5 horas da tarde saíram do cemitério da Atouguia, com 36 trens, nos quais iam os representantes de diversas corporações e as pessoas de mais distinção, para o cemitério paroquial de S. Salvador de Briteiros, os restos mortais do dr. Francisco Martins de Gouveia Morais Sarmento.
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. III, p. 27 v.)
Os restos mortais de Francisco Martins Sarmento, falecido a 9 de Agosto de 1899, foram trasladados para o cemitério de S. Salvador de Briteiros no dia 10 de Julho de 1904. Terá sido obra do acaso (pelo menos, nada encontrei que pudesse induzir algo diferente), mas não deixa de ser uma coincidência singular que a última viagem de Francisco Martins Sarmento tenha acontecido precisamente no dia em que passavam 30 anos sobre o início dos seus trabalhos de exploração da Citânia de Briteiros, que lhe trariam reconhecimento internacional.
Assim foi.
A urna de Sarmento, em mogno, estava, desde a véspera, na capela do cemitério da Atouguia. Segundo O Comércio de Guimarães, neste acto fúnebre participaram o que havia de mais distinto e selecto no nosso meio social, presidentes de todas as corporações civis e algumas religiosas, titulares dos mais considerados, autoridades locais, parentes do finado, e uma enorme multidão de povo que assistia respeitosa à passagem do grande morto.
O cortejo, integrando 36 carruagens, saiu em direcção a Briteiros às 5 da tarde, sendo, segundo o jornal Independente, imenso o povo que aparecia ao longo da estrada ou nos campos que lhe ficavam sobranceiros. A entrada no cemitério e S. Salvador de Briteiros fez-se através de duas longas alas formadas pelos membros das irmandades de Briteiros e das freguesias vizinhas, com tochas acesas.
Depois do responso pelo pároco da freguesia, falaram Ricardo Severo, engenheiro e arqueólogo, amigo de Sarmento, Joaquim José de Meira, presidente da Câmara, o seu filho João de Meira, em nome da academia vimaranense, João Gaspar de Abreu Lima, em nome da Direcção da Sociedade Martins Sarmento, à altura presidida pelo Abade de Tagilde. Falaria ainda o operáio Luís Martins, em nome do Povo de Guimarães e da corporação a que pertencia.
A seguir, trancreve-se o elogio de Sarmento lido por Ricardo Severo no cemitériod e Briteiros.

A memória de Martins Sarmento
De todas as homenagens públicas de consagração ao venerando Martins Sarmento — e talvez que a uma maior parte eu tenha assistido — guardo em conjunto a impressão de religioso respeito e admiração pela maneira elevada como este homem ilustre se impôs à multidão dos sceus compatriotas.
Pela luminosidade irradiante dos seus trabalhos literários, o efeito era de natural lógica no meio limitado dos espíritos cultos; ultrapassou-o, porém, estendendo-se pela massa popular do seu território natal, e este facto de excepção que surpreende, explica-o certamente a imensa bondade do seu carácter, o patriotismo da sua obra reconstrutiva, toda de natureza popular, toda profundamente nacional.
Houve tipos de investigadores que raramente sobressairam da cela recôondita em que se abrigaram as suas eruditas lucubrações. Muitos desaparecerami, sepultados no esquife do seu misterioso ser, sem que a tradição sequer deles contasse a existência. Entretanto, desde os profetas das religiões, os físicos e sonhadores, os filósofos e iluminados, a lenda sempre, a ingénua e poética lenda popular, muitos transportou para multidão humana, aureolados pela adoração dos povos como santos profetas da verdade. E curioso é que, tão longe estão as multidões das elevadas producções de tal erudita ciência, e vão, não obstante, pela força da sua superstição e da sua crença, desenterrar esse vidente, vivificá-lo no seu mito, que logo sr diluie pelo vasto paganismo da imensa alma popular.
É de ver que sejam de eleição os homens que curam as almas e os corpos, os que clamam para os povos as bênçãos do céu, os que pregam revelações divinas; surpreende, porém, que investigadores analistas dos fenómenos da natureza ou dos fastos da humanidade, cujas obras se exprimem em uma literatura de erudição, esses sejam, não compreendidos, mas pressentidos pela ingénua sentimentalidade do povo inculto.
Muitos veneram as memórias de Camões e Herculano — um exemplo nacional — através da sua lenda. Entre os povos daqui é irmãmente venerada a excepcional personalidade de Martins Sarmento; pelos povoados destes coloridos vales minhotos ele tem o seu miho, aureolando a figura dominante do homem bom e sábio.
A sua obra essencialmente democrática — o estudo das velhas origens nacionais — trouxe-o junto aos humildes. E a humildade dessas ruínas de antigas povoações que o seu esforço e a sua paixão descobriram, deixa entrever, como um quadro bíblico, o rude viver antepassado desse povo primitivo, na sua vida simples, ora agrícola ou pastoril, em familia patriarcal como ao tempo das santas escrituras.
Cada povoado de hoje revê-se nesses aspectos, muito mais próximos do que marca a velha idade das ruínas; e que ainda agora, pelo Alto-Minho, existem povoações acoguladas nos cumes, tal como os antigos castrejos de Briteiros. Nesse passado, nas próprias ruínas miseráveis, existe uma vida igual, um sofrimento irmão; a multidão de humildes encontra-se na pobreza desses outros antepassados, escravos da terra como hoje são, manso populacho cujo destino supremo foi sempre por este mundo humano o sofrimento pacífico de seres resignados.
Este homem de saber, que piedosamente gastou uma vida a desenterrar essas ruínaas singelas e pobres, os restos de velhas tribos ancestrais, natural será e de justiça que os humildes o considerem um superior homem de bondade, um apóstolo do bem, trabalhando pela grei e para a grei.
Aqui o vimos depor, a esse bendito homem, ao pé das suas ruínas, e junto aos simples aldeãos de Briteiros, dentro de uma cabana castreja, como rústico lavrador do passado; a arquitectura humilde deste túmulo ficará como uma reconstituição e como símbolo sobrevivente. E ao viajeiro, homem de Portugal, que em tarde como a de hoje por aqui poisar, este simples monumento acordará o sentimento do passado, a simpatia por esta obra de renascimento, a veneração por este apóstolo da verdade.
Lá no cimo, permanecerá esse outro monumento, as mortas ruínas, em perene exposição, brilhando à viva luz do sol, como a suprema verdade na história do mundo.
Em Briteiros, 10 — Julho — 1904.

Ricardo Severo

Comentar

0 Comentários