"Le tour du Monde": Guimarães em 1857


Castelo de Guimarães, visto a partir da estrada de Braga. - Desenho de Catenacci a partir de um esboço.
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Descrição de Guimarães, publicada em 1861, na revista francesa Le tour du Monde. O autor do texto, Olivier Merson, visitou Guimarães na Primavera de 1857. As gravuras que acompanham esta publicação são da mesma revista. No texto, dá-se uma versão um pouco diferente, da que hoje é corrente, do milagre do reverdecimento da oliveira, colocando na Praça da Oliveira de Guimarães a lenda da eleição de Wamba, rei dos visigodos.



Chegamos a Guimarães sem incidentes dignos de serem reportados.

A estrada é fraca, mas a terra é bonita, arborizada, fértil em vistas, às quais Cristoval, geralmente insensível aos atractivos da natureza, foi dando a sua aprovação, deixando aparecer os seus dentes de crocodilo. Ao longe, no flanco das encostas e das montanhas, estão espalhadas aldeias, onde a igreja ergue para o céu um pequeno sino e, às vezes, depois de uma ressalto de terreno rochoso, se encontra um belo prado coberto com uma infinidade de flores vermelhas e brancos, e a vinhas que crescem presas aos carvalhos e aos castanheiros que bordejam o caminho, formando, com os seus ramos e os seus galhos entrelaçados acima da cabeça do viajante, um tecto de verdura fresca e elegante.

Guimarães está construída num belo vale, onde os eruditos julgam encontrar a antiga Araduca, assinalada por Ptolomeu, cujos habitantes foram colocados sob a proteção de Ceres. Anteriormente conquistada aos mouros pelos reis de Leão e Oviedo, a cidade está, não muito longe do rio Avizela, sobre a margem direita do Ave, cujo curso tranquilo prossegue até ao Oceano, que o recebe entre duas metades de porto, Azurara e Vila do Conde1. Primeiro condado, elevada mais tarde a ducado para se tornar prerrogativa hereditária do varão herdeiro da casa de Bragança, Guimarães está rodeada por fortificações devidas, em parte, ao rei Dinis, e um velho castelo defende um território já de si difícil, onde o presença de espírito e a firmeza do Marechal Soult salvou o exército francês, assim que teve que evacuar a província.


Castelo de Guimarães. - Desenho de Catenacci a partir de uma fotografia de M. Lefèvre.
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O castelo situa-se na parte da cidade chamada Vila Velha. Quando as sombras da noite, desfocando os detalhes, ampliam as proporções das massas, ele ainda pode proclamar a força, o vigor; a sua silhueta alta exibe uma espécie de importância, e a aparência do seu perfil tem algo de enérgico, de rude, de ameaçador. De dia, essa impressão desaparece: o colosso é decrépito e encontra-se em mau estado. Não interessa, rachados, instáveis nas suas fundações e até mesmo em colapso em alguns pontoss, estes muros são altamente respeitáveis: foi aí que nasceu Afonso, o primeiro rei de Portugal, neste espaço onde Tareja presidiu à Academia - um pouco galante – que ela constituiu sob a inspiração do trovadores bearneses; essas ameias, cuja construção remonta talvez aos Almorávidas, abrigaram, defenderam e salvaram a monarquia nascente, quando Afonso se viu cercado na sua capital pelo rei de Leão, e estas nobres memórias protegem a antiga fortaleza contra a indiferença do turista.

A igreja de Nossa Senhora da Oliveira recebeu o seu nome de uma lenda curiosa. Aqui está: no tempo dos godos, Wamba andava, um dia, ocupado na lavra de um campo. Ele próprio conduzia o arado e, com o aguilhão na mão, incentivava os seus bois, quando os mensageiros da nobreza vieram encontrá-lo no meio desta ocupação e lhe anunciaram a sua ascensão ao trono. Surpreso e incrédulo, Wamba, que nunca tinha sonhado com a coroa, respondeu-lhes que seria rei quando o seu aguilhão desse folhas e, ao mesmo tempo, enterrou-o no chão. Por um aumento extraordinário da vegetação, ou antes, por uma intervenção imediata do Céu, o aguilhão ganhou raízes num instante e cobriu-se de ramos, folhas e frutas.

A memória deste prodígio não está apenas preservada no nome da Igreja. Na frente de Nossa Senhora da Oliveira, na Praça da Colegiada, o Padrão (monumento) testemunha o culto que envolve a tradição da oliveira. O Padrão, pequena construção gótica do início do século XIV, foi erigido junto ao local onde ocorreu o milagre, e a própria oliveira, a oliveira de Wamba, o Rei agricultor - ou um dos seus ramos – está ali, cingida por uma balaustrada de ferro, estendendo os seus ramos que permanecem jovens e vigorosos, honrada, venerada e um pouco adorada, eu creio, por todas as gerações que se sucederam na terra ao longo de uma dezena de séculos. Eu não partilho, talvez, desta forma de crença popular, mas Deus me guarde de um escárnio! A lenda é bonita, tem o perfume de ingenuidade que convém ao assunto e eu respeito-a, pelo menos como uma relíquia dos tempos que já não são mais.



Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães. - Desenho de Catenacci a partir de uma fotografia de M. Seabra.
Atente-se no pormenor de ser visível o altar em madeira, dedicado a Nossa Senhora da Vitória, que antigamente estava no interior do Padrão.
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A igreja de Nossa Senhora da Oliveira tem um carácter severo; pertence, também, ao século XIV2. Infelizmente, sob o pretexto de restauro, algumas partes do exterior foram redesenhadas num estilo que é incompatível com o carácter original do edifício e o interior foi revestido de novo, empregando revestimento de gesso com o efeito mais patético. Afonso foi baptizado nesta igreja, onde se conserva a pia baptismal que foi usada na cerimónia. Diz-se que o tesouro da Igreja é rico em peças de prata muito antigas e de bom lavor.3

A Vila Nova já tem mais de quatrocentos e cinquenta anos: levantou-se da antiga vila no início do século XV e, como as suas igrejas, as suas ruas largas, as suas praças cercadas por galerias e por casas geralmente bem construídas nada nos dizem de novo, depois de ter dedicado à Nossa Senhora da Oliveira, ao Padrão e ao castelo a maior parte do nosso tempo, voltamos para o hotel, para nos prepararmos com algum repouso para a na estrada do dia seguinte, que será necessariamente longa e cansativa.
Olivier Merson.

1. As rochas e as areias tornam muito perigoso o acesso ao Ave. A barra, na maré alta, é de apenas treze pés.

2. Esta basílica foi construída sob D. João I, a capela-mor sob D. Pedro II, em 1670. O Padrão é devido à piedade de Afonso IV, cujas armas decoram os frontões do pequeno edifício.

3. A lei dá o título de Senhoria aos cabidos das igrejas arquiepiscopal e episcopal, como um corpo coletivo. Como excepção, os membros dos cabidos de Guimarães, Braga e Porto desfrutam individualmente desta prerrogativa honorária. O Patriarca de Lisboa, Eminência. Além disso, no uso geral, todo homem é como deve ser, Excelência. Uma pessoa das classes mais baixas, diz-se Senhoria, e hoje a qualificação Vossa Mercê, que se dava antigamente aos proletários, é, por assim dizer, admitida em qualquer lugar.

Voyage dans les provinces du Nord du Portugal, par m. Olivier Merson, avril  et mai   1857. —  texte   et dessins inedits, Le tour du Monde – 1861, pp. 286-287

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